segunda-feira, 14 de março de 2011

Urbanização muda para sempre o perfil da Lagoinha


Se a Lagoinha fosse verbete de dicionário, desafiaria o poder de síntese do autor da obra. Isso porque ela não é só um bairro da Região Noroeste de Belo Horizonte. A Lagoinha abraçou um território inteiro – São Cristóvão, Bonfim, parte da Floresta – e se tornou conceito que se confunde com a história de BH. Em 1897, moradia dos trabalhadores que vieram erguer a capital, atraiu, nos anos seguintes, famílias italianas e portuguesas que viam das janelas o Centro da cidade separado do bairro apenas pela linha do trem e pelo Ribeirão Arrudas. Foi também nesse ponto estratégico que proliferou, até a década de 1960, a legítima malandragem, feita com lábia na ponta da língua, navalha no bolso e Glostora (uma espécie de gel) no cabelo. A boemia que começava nas rodas de samba e terminava na cama das meretrizes rendeu à área, inclusive, o título de "Lapa Mineira". Mas a cidade cresceu, o trânsito pediu passagem e a região pagou o preço da localização privilegiada. Primeiro, rasgada à força de máquinas e dinamite, ganhou viadutos e túneis, em um complexo que abriu caminho na sua charmosa marginalidade e nela plantou a semente do progresso. No fim desta primeira década do século 21, a urbanização novamente frutifica em mais viadutos, mais alças, mais passarelas, em um processo que traz a promessa de redenção da área, em franco processo de decadência. Mas as obras não deixam de provocar nos mais saudosistas também a impressão de que a metrópole está engolindo mais um pedaço da própria memória.

Em nome do progresso, foi preciso dizer adeus à Praça Vaz de Mello, a parte da Rua Itapecerica, à Feira dos Produtores, a casas e comércios, que deram lugar ao Complexo Viário da Lagoinha e ao metrô. As mudanças ocorreram entre o fim dos anos 1960 e meados da década de 1980 e indicavam que Belo Horizonte dava os primeiros passos como metrópole. Desta vez, moradores se despedem de parte da estrutura da região. Supermercado, farmácia, comércio, além de residências, vão dar passagem a automóveis e ônibus. As ruas Diamantina, Itapecerica e Francisco Soucasseaux estão cada vez mais próximas da Avenida Antônio Carlos.

Espremida entre viadutos e túneis, a região, hoje lugar por onde vagam mendigos, com casas tingidas de poluição, paga agora o preço de estar no meio do caminho entre o Centro e o Vetor Norte da capital. Este ano, a segunda etapa da duplicação da Avenida Antônio Carlos representará a construção de sete viadutos, obra prevista para terminar em março de 2010. Lá se vão terra abaixo 280 imóveis, entre casas, comércios e galpões, mas lá vêm de volta lembranças para os moradores que resistem. Uma delas é a do poço que batizou o bairro. No meio das escavações, o lamaçal formado pela água que brota do chão mostra que a Lagoinha não é chamada assim à toa.

O representante comercial Marcos Henrique Vaz de Mello, de 50 anos, nascido e criado na região, carrega o sobrenome de uma das mais tradicionais famílias do bairro, que já foi dona de armazéns, bares e até do terreno onde é hoje o Parque Municipal. Quando nasceu, a região tinha ares de fazenda; agora, segundo define, é progresso. “O progresso tem que vir, a cidade não comporta a quantidade de carros, mas o barulho é 24 horas. Eu mesmo devo ter que sair da minha casa, numa próxima etapa da obra. Quanto ao futuro, só saberemos o que será quando tudo ficar pronto”, afirma.

Transformações na paisagem e no cotidiano também batem na porta dos mais de 5 mil moradores dos nove prédios do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), no Bairro São Cristóvão. Construído na década de 1940 na Antônio Carlos, mesma época da construção da avenida, o conjunto, tombado pelo Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte, está hoje no meio de um canteiro de obras. Para alguns moradores, a poeira nem é problema, pois acaba com o fim dos trabalhos. “Mas tiraram os Correios, o supermercado, a farmácia. Agora, temos que ir ao Centro para comprar tudo”, afirma a aposentada Terezinha Augusto Gama, de 74 anos, há meio século no conjunto.

Moradora da região desde 1979 e apaixonada pelo local há mais de 40 anos, a lavadeira Maria Célia Alves da Cruz, de 57, testemunha as mudanças da janela de casa e se lembra de uma vista que agora é só recordação, época do Cine São Geraldo, aonde ia assistir a filmes de Zé do Caixão. “Daqui de cima eu via os vizinhos, mas todo mundo foi embora e vieram as obras. Acabou tudo, é só poeira.”

A amargura de alguns moradores, acentuada pela rapidez das mudanças, mostra que a Lagoinha já não é a mesma. Mas, como o processo é contínuo, muitos alimentam também a esperança de melhorias. Therezinha de Araújo Brandão vive desde que nasceu, há 81 anos, na mesma casa, na Rua Adalberto Ferraz. O quintal, com quatro jabuticabeiras, permanece o mesmo, assim como a sala que abriga instrumentos da Corporação Musical Nossa Senhora da Conceição, primeira da capital e fundada por seu pai, em 1914. Fora dela, a vizinhança é outra e, no peito, vibra a vontade de ver a região revitalizada, como nos tempos em que a Casa da Loba era sinônimo de luxo na Rua Itapecerica, onde de um tudo se achava. “Estou feliz. A Lagoinha está um cacareco e dizem que agora vai se valorizar muito. Mas aí acho que só meus sobrinhos verão”, diz Therezinha, apontando uma referência que parece imutável: "A Igreja Nossa Senhora da Conceição é que garante nosso lado! Estamos ensaiando o coro para nos apresentarmos, mais uma vez, na festa de 8 de dezembro”, diz, em referência aos festejos em homenagem à santa.

http://wwo.uai.com.br/UAI/html/sessao_2/2009/09/07/em_noticia_interna,id_sessao=2&id_noticia=126259/em_noticia_interna.shtml

Um comentário:

  1. A rua Itapecerica antes caracterizada como um importante centro comercial conhecida por seus antigos casarões com a implantação do complexo da Lagoinha perdeu subretudo no seu valor cultural, a arquitetura e estabelecimentos de usos diversificados deram lugar ao medo e ao abandono.

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